Nadine Gordimer, Nobel de Literatura, 1991

 NADINE GORDIMER: A GUERREIRA QUE USAVA LIVROS COMO ARMAS

Olá, estimados leitores e leitoras, vocês estão prontos para a viagem de hoje? Vamos iniciá-la, então, na África do Sul, mais especificamente na cidade de Springs, local em que, no dia 20 de novembro de 1923, nasceu Nadine Gordimer, uma mulher que retratou em seus escritos as injustiças raciais e sociais impostas pelo regime do apartheid.

 

Nadine era filha de imigrantes europeus: sua mãe, Nan, havia nascido na Inglaterra e seu pai, Isidore, na Letônia, país que na época fazia parte do Império Russo. Os Gordimer criaram Nadine e sua irmã mais velha em meio a uma hierarquia social complexa, rígida e desigual: no estrato superior da sociedade estavam os primeiros colonos vindos da Inglaterra e os afrikaners brancos, descendentes de colonizadores do oeste europeu; abaixo deles, vinham os imigrantes recentemente chegados do leste europeu, dentre os quais, Isidore Gordimer. No estrato inferior, enfrentando as maiores desvantagens, estavam os negros que trabalhavam nas minas de ouro da cidade, cujo acesso a todas as instalações públicas era negado. Isidore, sendo judeu, havia enfrentado discriminação religiosa em sua terra natal e acabou aceitando o sistema social tal qual o encontrou. Por outro lado, Nan não se conformou com a injustiça social e, como forma de combatê-la, fundou uma creche para os filhos dos trabalhadores negros da cidade.

Aos seis anos de idade, influenciada pela mãe, Nadine se tornou um membro da biblioteca infantil da cidade, o que fez com que ela se tornasse uma grande leitora. A mãe dela era amiga da bibliotecária e isso possibilitou que a menina, mesmo muito nova, deixasse o departamento infantil e partisse para as leituras disponíveis no departamento dos adultos. Não havia livros suficientes que pudessem satisfazer seu desejo de ler e foi isso que a inspirou a começar a escrever. Em entrevista concedida à Academy of Achievement, ao relembrar essa situação, a escritora reflete sobre quão dura era a realidade social em que estava inserida, pois se tivesse nascido negra provavelmente não teria contato com a leitura do modo que teve, já que a biblioteca municipal podia ser usada apenas por brancos.

Na adolescência, Nadine presenciou uma cena que imprimiu nela a realidade brutal do sistema: no meio da noite a polícia local invadiu a casa da família e revirou o quarto da empregada, negra, pois suspeitavam que ela fermentava cerveja ilegalmente. Esse acontecimento a levou a entender como o fato de ser branca era um privilégio e, mais tarde, formou a base de uma das primeiras histórias publicadas por ela.

Ainda na juventude, ela teve uma paixão pela dança. Entretanto, a descoberta de que a menina tinha uma doença na glândula tireoide fez com que a mãe dela ficasse tão assustada que decidiu afasta-la das aulas de dança e também da escola. Dali em diante, ela foi educada em casa. Nessa situação, como forma de driblar a solidão, Nadine encontrou um mundo de aventuras e ideias na leitura. Foi a partir daí, também, que começou a escrever, tendo publicado sua primeira história na seção infantil do jornal local. Pouco tempo depois, aos 15 anos de idade, ela teve uma história publicada em um jornal para leitores adultos.

Aos 19 anos de idade, ela resolveu frequentar a Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. A instituição era para brancos, mas havia ocasiões em que estudantes negros, geralmente da pós-graduação, eram aceitos. Lá ela conheceu jovens artistas e escritores negros, que viriam a se reunir no bairro conhecido como Sophiatown. Após um ano, em 1948, Gordimer deixou a faculdade, sem uma graduação, e se estabeleceu na cidade. No mesmo ano, o Partido Nacional, dominado pelos afrikaners brancos, ganhou a eleição nacional e começou a instituir a política do apartheid, estabelecendo a separação das raças. Sophiatown e outros bairros foram demolidos, para substituir os residentes negros por brancos e amigos de Nadine estavam entre as pessoas que perderam as suas casas.

Em 1949, o primeiro conto de Nadine, Face to Face (Cara a Cara, em livre tradução), foi publicado, seguido das coleções Town and Country Lovers (Amantes da Cidade e do Campo, em livre tradução) e The Soft Voice of the Serpent (A Voz Suave da Serpente, em livre tradução). Em 1951, a escrita dela começou a chamar atenção em outros países, principalmente quando suas histórias começaram a aparecer na revista estadunidense The New Yorker. Em 1953, ela publicou seu primeiro romance, The Lying Days (Os Dias Mentirosos, em livre tradução), que descrevia o despertar político de uma jovem mulher crescendo na cidade natal de Gordimer.

Um breve primeiro casamento resultou no nascimento da sua primeira filha, Oriane, em 1950. Em 1954, Nadine casou-se com Reinhold Cassirer, um negociante de arte que tinha ido à África do Sul como um refugiado do regime nazista alemão. Um ano depois, nasceu o primeiro filho do casal: Hugo.

As medidas repressivas contra negros e os críticos do regime se intensificaram na África do Sul, no começo de 1960. Nesse ano, Bettie du Toit, ativista política e grande amiga de Nadine, foi presa. Além disso, ocorreu o massacre sangrento de manifestantes negros em Sharpeville. Esses acontecimentos fizeram com que a oposição da escritora ao regime crescesse. Foi quando ela se tornou amiga dos advogados Bram Fischer e George Bizos, que defenderam Nelson Mandela em seu julgamento de traição em 1962.

Um dos primeiros romances de Gordimer, A World of Strangers (Um Mundo de Estranhos, em livre tradução), de 1958, foi banido pelo governo sul africano. Porém, o trabalho dela continuou atraindo atenção fora do país e, em 1961, recebeu o prêmio literário W. H. Smith Commonwealth, sua primeira honraria internacional. Gordimer continuou a desafiar as estruturas do apartheid em seu trabalho: o romance Occasion for Loving (Ocasião Para Amar, em livre tradução), de 1963, retratou uma mulher branca apaixonada por um homem negro, enquanto relacionamentos interraciais era proibidos por lei. Em 1974, ela publicou The Conservationist (O Conservador), que lhe rendeu o Book Prize, a maior honraria literária do Reino Unido. Paralelamente a isso, na década de 1970, o conflito armado entre o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Partido Nacional se intensificou, e Gordimer se juntou ao ANC, banido pelo governo, e algumas vezes escondeu os líderes fugitivos do grupo em sua casa.

Em 1979, a escritora foi censurada novamente, quando o governo baniu seu romance Burger’s Daughter (A Filha de Burger). Ao invés de aceitar o banimento, Gordimer, com o auxílio de seus amigos advogados, fez um requerimento ao painel de censura, perguntando as razões para aquela medida. Na resposta, o motivo do banimento foi dito ser blasfêmia: em um dos diálogos da história, pais falam para seu filho que Jesus, sendo nascido no Oriente Médio, provavelmente não tinha olhos azuis e cabelos loiros. Após receber a resposta, ela publicou um livreto chamado What Happened to Burger’s Daughter (O Que Aconteceu com A Filha de Burger, em livre tradução), que foi fornecido a livrarias para que distribuíssem, gratuitamente, para as pessoas. A censura desse livro foi revogada, porém, em 1981, o romance July’s People (Pessoas de Julho, em livre tradução) – cuja história era sobre um futuro pós-apartheid no qual uma revolução violenta liderada pelos negros havia levado muitos brancos a se esconderem – foi banido. Assim, enquanto os livros de Nadine Gordimer estavam sendo publicados e apreciados em outras partes do mundo, seu próprio povo não podia ler suas histórias, a não ser que contrabandeassem as obras.

O ano de 1990 representou um ponto de virada na história da África do Sul: o governo reconheceu o ANC como um partido de oposição legal e iniciou as negociações para a transição para uma democracia multirracial. Quando o líder da ANC, Nelson Mandela, foi solto da prisão, Nadine Gordimer foi uma das primeiras pessoas que ele pediu pra ver. No mesmo ano, foi anunciado que ela receberia o Prêmio Nobel em Literatura de 1991. Ao selecioná-la para o prêmio, a Academia Sueca elogiou o “imediatismo intenso” de seu trabalho ao retratar “relações pessoais e sociais extremamente complicadas”. O trabalho dela foi dito exemplificar o conceito da literatura em “benefício da humanidade”, que Alfred Nobel tinha visado quando criou o prêmio.

 

Nadine Gordimer 

Fonte: Boberger/Wikimedia Commons/Licença: CC BY 3.0

 O trabalho pós-apartheid de Gordimer explorou as dificuldades de uma sociedade em transição de um passado trágico a um futuro incerto. Com a morte do marido, em 2001, temas de luto passaram a fazer parte de seus escritos. Além disso, no início dos anos 2000, a África do Sul passava pela crise do HIV-AIDS e Nadine, como forma de contribuir no combate à essa questão, reuniu a antologia Telling Tales (Contando Histórias), com textos próprios e de amigos escritores. O material foi publicado em mais de 15 línguas ao redor do mundo e todo lucro foi destinado a ações de prevenção e tratamento da doença.

Seu décimo quinto e último romance, No Time Like the Present (O Melhor Tempo é o Presente), foi publicado em 2012. Em 13 de julho de 2014, em sua casa em Joanesburgo, Nadine Gordimer faleceu, aos 90 anos de idade.

 

Algumas curiosidades sobre Nadine Gordimer...

·         Recebeu graus honorários de diversas Universidades, dentre as quais: Yale, Harvard, Columbia e New School for Social Research (Estados Unidos); Leuven (Bélgica); York e Cambridge (Inglaterra); Cape Town e Witwatersrand (África do Sul).

·         Foi membro da Royal Society of Literature.

·         Foi embaixadora de boa vontade do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), que tem por objetivo promover o desenvolvimento e erradicar a pobreza do mundo.

·         Foi vice-presidente do PEN Internacional, um clube que reúne escritores do mundo todo.

·         Doou parte do dinheiro recebido ao ganhar o Prêmio Nobel para o Congresso Sul Africano de Escritores.

 

Esperamos que vocês tenham gostado da viagem de hoje, estimados leitores e leitoras. Cuidem-se e até a próxima!

 

Marcia Gabriela Pianaro Valenga

Tatiana Simões

FONTE: Academy of Achievement

 

 

 

Você pode encontrar um pouco mais sobre Nadine Gordimer em...


·         Entrevista transcrita e com vídeo “Warrior of Imagination

Em entrevista concedida à Academy of Achievement, Nadine Gordimer fala sobre sua história de vida e os acontecimentos que lhe inspiraram a escrever.

Ela pode ser vista na íntegra no link: https://achievement.org/achiever/nadine-gordimer/#interview

 

·         Vídeo “Nadine Gordimer – Prose

A Laureada com o Nobel de Literatura de 1991, Nadine Gordimer, lê seu conto “Loot” de “Loot and Other Stories”. O vídeo foi gravado na Universidade de Harvard, em abril de 2005.

Ele pode ser visto na íntegra no link: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1991/gordimer/25767-nadine-gordimer-prose-1991/

 

·         Vídeo “Nadine Gordimer no Roda Viva – 08/07/2007

A escritora e ativista política da África do Sul, Nadine Gordimer, vem ao Roda Viva para debater uma literatura que retrata dramas da aventura humana nessas últimas décadas, como a luta por democracia, aumento da violência urbana, guerras e conflitos étnicos que desafiam esse mundo globalizado.

Ele pode ser visualizado na íntegra no link: https://www.youtube.com/watch?v=RhFlOkQcO4A

 

 

Referências

 

NADINE GORDIMER – Article. The Nobel Prize. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1991/gordimer/article/. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER – Bibliography. The Nobel Prize. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1991/gordimer/bibliography/. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER – Bibliographical. The Nobel Prize. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1991/gordimer/biographical/. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER - Biography. Academy of Achievement. Disponível em: https://achievement.org/achiever/nadine-gordimer/#biography. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER - Interview. Academy of Achievement. Disponível em:https://achievement.org/achiever/nadine-gordimer/#interview. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER - Profile. Academy of Achievement. Disponível em: https://achievement.org/achiever/nadine-gordimer/#profile. Acesso em: 12 nov. 2020.

 

NADINE GORDIMER. Wikimedia Commons. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nadine_Gordimer_01.JPG. Acesso em: 12. nov. 2020.

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