MMC ENTREVISTA - Carolina Panis

 MMC ENTREVISTA - Carolina Panis



Dra. Carolina Panis já recebeu mais de 50 prêmios em pesquisa sobre câncer, mulheres e agrotóxicos
 

Este trabalho, desenvolvido na Unioeste, campus de Francisco Beltrão, tem 10 anos de existência e ganhou reconhecimento mundial

 

Por Leandra Francischett

Dra. Carolina Panis completou 43 anos em maio, uma pesquisadora jovem para tantos feitos na ciência. Sua pesquisa sobre câncer, mulheres e agrotóxico rendeu-lhe vários prêmios e um convite para trabalhar na Universidade de Harvard. A partir de um trabalho recente, com 10 anos de existência, ela conquistou reconhecimento mundial e foi contatada pelo Ministério da Saúde do Brasil, por exemplo, para contribuir com a área.

Carolina nasceu em Itapetininga (SP), em 16 de maio de 1980, trabalha na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), na graduação em Medicina e na pós-graduação em Ciências Aplicadas à Saúde. Atua ainda na Universidade Estadual de Londrina (UEL), vinculada ao programa de pós-graduação em Patologia Experimental, sendo essa a universidade onde se formou. Trabalha também no programa de Fisiopatologia Clínica e Laboratorial e é plantonista no Hospital Regional do Sudoeste dr. Walter Alberto Pécoits, em Francisco Beltrão. Foi linha de frente na pandemia de covid e, praticamente todos os dias, precisa “driblar” as fake news, bem como as grandes potências econômicas, que muitas vezes tentam desvalorizar a ciência. Na universidade, trabalha como docente e como pesquisadora e, no Hospital Regional, como plantonista.

Ela é graduada em Farmácia e em Bioquímica, especialista em Infecção Hospitalar, mestre em Patologia Experimental na área imunologia, doutora em Patologia Experimental na área de câncer e pós-doutora em Oncologia. Sua formação foi na UEL, até fazer o pós-doutorado no Instituto Nacional de Câncer. Em seguida retornou para UEL e fez outro pós-doutorado na Patologia, para trabalhar com quimiorresistência do câncer e definir a sua área de atuação. Depois disso, foi pesquisadora visitante no exterior, na Universidade de Harvard e na Universidade do Arizona, ambas nos Estados Unidos.

 

Como surgiu o interesse pela ciência?

Eu já me fiz essa pergunta algumas vezes. Eu acho que o interesse pela ciência nasceu quando era muito criança, porque eu sempre gostei disso. E um fato que me marcou muito é que meu pai teve malária; minha irmã tinha recém-nascido, então eu tinha quatro anos de idade. O meu pai ficou muito doente, era caminhoneiro, estava lá no Amazonas e voltou pelo Mato Grosso, muito doente. E esta cena me marcou muito. Depois disso, meu pai ficou um tempo em casa e ele me falava muito sobre a malária, sobre o ciclo de transmissão do parasita. Apesar de meu pai não ter estudo, com certeza foi o meu primeiro professor de ciências. Eu sempre fui muito incentivada em casa. Eu lembro de muito criança assistir documentários sobre ciência, naquela época muito menos acessível do que hoje. Tinha um senhorzinho velhinho que chamava Jacques Cousteau, o programa dele passava na TV aberta, inclusive. E aí eu lembro que meu pai me incentivava muito a assistir e conversar sobre isso, entender como é que as coisas funcionavam. Eu achava até um tempo que o gosto pela ciência nasceu na minha adolescência, mas olhando para trás ele começou na minha infância. Na adolescência, definitivamente, eu decidi que eu ia fazer um curso na área científica, tinha minhas dúvidas se ia ser na área de Química ou na área de Saúde, até que eu optei por Bioquímica, que mistura as duas coisas. Enfim, não escolheria outro curso.

 

Na sua opinião, como está o campo para as mulheres nas ciências no Brasil?

Se eu for olhar de quando eu comecei para agora, já mudou bastante coisa. É um campo muito desafiador ainda, porque em determinadas áreas, como as Exatas, você tem editais quase que 100% financiados para homens. Os editais de bolsa do CNPq foram bastante discutidos recentemente, especialmente das bolsas de produtividade, porque se você comparar a quantidade de homens que recebe essas bolsas é uma coisa assustadora. E se a gente for olhar a proporção entre homens e mulheres nessas áreas é uma quantidade proporção bastante grande de mulheres. Eu comecei em 1999 a fazer graduação, então eu sempre falo que eu comecei na ciência em 1999. De lá para cá, a gente vê um crescente de mulheres docentes, mulheres pesquisadoras, mas não necessariamente um crescente de mulheres com projetos e bolsas financiadas. A situação da mulher tem que avançar muito, ela está avançando. A gente não pode negar que a mulher está - na base do fórceps - tomando o seu espaço. Não é porque alguém está dizendo vamos ceder o espaço, vamos ser iguais. Não, a mulher vem brigando por esse espaço, inclusive a mulher mãe, que na minha faixa etária é a grande maioria das cientistas, é a mulher que tem filho, a mulher que tem outro compromisso além da universidade. E a gente vem brigando e brigando muito por esse espaço, porque, em algumas regiões, a gente vê que existe um patriarcado pesado, que não enxerga a mulher como parte do sistema - a mulher é invisível. Eu acho que a situação da mulher na ciência tem que avançar infinitamente. A gente sempre cita, quando fala disso, o exemplo da Marie Curie, que foi uma cientista que viveu uma outra época, em que ela era a única expoente, mas que até para ganhar um prêmio Nobel - que era dela por mérito - recebeu uma negativa, por ser mulher. O prêmio foi dado ao marido dela e que depois reconheceu, talvez até por brigas internas em casa, que ela tinha que ter o nome também na premiação. E hoje ela é a única mulher, que foi agraciada com dois prêmios Nobel na história da ciência. Então, imagina a potência dessa mulher se no tempo em que ela viveu a mulher fosse vista e tivesse espaço. Meu filho me fez uma pergunta esses dias: ‘Se você tivesse vivido no tempo do Einstein, mãe, você seria um Einstein?’ Aí eu falei: ‘Filho, eu acho que eu seria alguém importante sim ...  não sei se o calibre do Einstein, mas fazendo o que a gente faz a gente teria um destaque muito grande, porque naquela época não existiam tantos cientistas, pensando por esse lado. Por outro lado, eu sou mulher, se fosse um homem talvez seria sim um Einstein naquela época, mas sendo mulher eu já tenho as minhas dúvidas do espaço que iam dar para isso’.

 

 

 

Para você, quais são as mulheres inspiradoras na ciência?

Eu acho que todas elas são, porque todas que têm uma história muito bonita. Assim, historicamente, eu já citei a Marie Curie, que é quem fez história como pioneira na ciência, principalmente porque eu vim da Bioquímica e em Química ela é o primeiro nome que a gente ouve falar. Dali para frente existe um vazio gigantesco, você não ouve falar de mulher historicamente depois da Marie Curie (apesar de existirem várias!). A gente volta a falar um pouco de mulheres cientistas agora, nos anos mais recentes. Temos as cientistas que se destacaram, por exemplo, na descoberta da vacina da Covid-19. Na ciência brasileira enfrentamos uma série de preconceitos durante a pandemia, quando viemos a público dizer, por exemplo, que várias informações sobre o Covid-19, baseados em fake news e informação de WhatsApp, não eram verdadeiros. Teve muita mulher cientista batalhando nisso, então citar nomes dessa fase é até um pecado, porque foram muitas. Mas acho que as minhas orientadoras que tive ao longo da vida são mulheres muito inspiradoras. Por exemplo, minha supervisora de pós-doutorado, Dra. Eliana Abdelhay, que é uma referência no Brasil, foi uma das primeiras cientistas brasileiras a fazer doutorado em uma das maiores instituições científicas do mundo na França, o Instituto Pasteur. Ela foi formando essa rede de mulheres de destaque na ciência da qual eu faço parte hoje, muito inspiradora. Ela foi a precursora dos estudos do sangue artificial no Brasil. Ela é uma cientista que eu respeito demais, já respeitava antes, tinha vontade de trabalhar com ela e consegui no meu pós-doc. E no mundo de hoje, depois que eu virei cientista, conheci muita gente que faz todo tipo de ciência e são todas inspiradoras.

 

Como você avalia a questão das fake news?

A gente vem de um período bem obscuro de negacionismo científico e foi esse negacionismo que trouxe essa onda de notícias falsas. Chegamos num ponto, durante a pandemia, que tudo que a gente cientista falava era contestado, e que a conversa do WhatsApp ou da vizinha ou o vídeo do YouTube é que eram a verdade. Passamos por um período muito difícil aqui no Brasil e nos Estados Unidos. O período que eu fiquei lá foi anterior ao início da pandemia, mas a gente acha que só no Brasil que tem fake News. A gente viu muito movimento anti-vacina lá fora, nesse contexto da Covid principalmente, acho que foi o grande momento de contestação da ciência. Embora tenha diminuído, ainda existe. Até hoje, quando a gente vai falar de ciência com as pessoas, elas já contrapõem o que você está falando com alguma fake news, como se aquilo fosse muito verdade. Eu, por exemplo, que trabalho com agrotóxico, quando eu vou discutir a relação do câncer do agrotóxico, que faz 10 anos que a gente trabalha e a gente tem evidências sólidas sobre isso, sempre tem alguém dizendo ‘não, não, tem um vídeo na internet falando que não, é só você colocar bicarbonato na água e tomar que você não vai ter câncer não’. Então, sempre alguém tem uma solução mágica e que não é científica, e eles vêm com essa informação para contrapor a ciência, A gente está passando um momento muito difícil, que é de tentar escapar desse processo das informações falsas e contrapor isso com as informações verdadeiras. A gente não pode parar, a hora que a gente cansar e desistir a ciência acaba e ela vai ser tomada por essas mentiras sem fundamento. Na minha área, particularmente, como eu trabalho com câncer e agrotóxico, é muita fake News.

 

E como que você acha que a gente poderia evitar isso? Eu ouvi um pesquisador da Capes que falou que os profissionais têm que se posicionar, concorda?

É exatamente isso. Chegou um ponto na pandemia que a gente ficou tão cansado que até desistia de explicar as coisas para as pessoas e eu pego a cloroquina como exemplo, que deu muita polêmica. Quando a gente ia explicar o fundamento do que é, para que ela estava sendo usada e que não existia na ocasião uma evidência científica sólida, a gente cansava, desistia de falar disso, porque ninguém queria entender. Aí veio esse movimento de divulgação científica cobrando: ‘Vocês têm o conhecimento, vocês têm que se posicionar, não interessa se pessoas vão fazer de conta que não estou ouvindo ou se elas não querem ouvir, vocês vão continuar se posicionando’. E existe hoje um movimento na ciência para que a gente fale, para que a gente divulgue. Todo cientista tem uma página de divulgação científica. No nosso laboratório, por exemplo, tem uma página (@Laboratório de Biologia de Tumores) onde a gente faz divulgação científica em rede social, porque este poder só está na nossa mão, não tem com um outro profissional que não seja cientista faça esse trabalho. A gente tem ajuda da imprensa séria, ajuda das pessoas que trabalham em blogs de ciência, em divulgação científica, mas a fonte da informação sempre vai ser um cientista. Se a gente não se posicionar, se a gente não falar em público, se a gente não traduzir esse conhecimento técnico numa linguagem que até um analfabeto entenda, a gente não vai vencer essa batalha e temos feito muito isso. Aqui, particularmente, eu trabalho com as mulheres agricultoras. Temos um nicho que tem um conhecimento menor em termos escolaridade, não de vida, mas pessoas que têm dificuldade de entender algumas situações e a gente tem feito esforço muito grande para atingir esse público, com uma linguagem bem simples, com materiais que sejam informativos, que tenham mapas, desenhos. Trazer essas pessoas para dentro da ciência, já que a ciência não consegue -  com a sua linguagem técnica e rebuscada - entrar na casa das pessoas. Temos feito isso com criança, com projetos em escola, com as mulheres agricultoras em coletivos de agricultores. Passamos por um processo de transformação dessa linguagem técnica, rebuscada, difícil, para uma linguagem inclusiva e que todo mundo entenda. Até nos Estados Unidos, eu participei de um curso lá e eles me disseram assim: ‘Você pegou o elevador com Barack Obama, você tem um minuto até chegar no seu andar. Nesse um minuto você vai ter que contar a história do seu projeto e dizer porquê que ele vai te dar 5 milhões de dólares para financiar esse projeto’. Eles chamam essa atividade de elevator pitch, que seria a subida de um elevador em um minuto. Então eu tenho um minuto para contar tudo isso que a gente faz aqui numa linguagem acessível para uma pessoa que não é da área, e convencê-la, o que é um baita exercício. A gente cobra isso dos nossos alunos, traduza a ciência, porque se ela não for traduzida vai ficar guardada para nós - e ficando só para gente ela não serve para nada, ela morre.

 

Quanto às mulheres, o que falta para elas ganharem espaço na área?

Falta muita coisa. Eu penso o seguinte, enquanto a gente não tiver mulher formulando políticas nessa área para mulheres, a gente não vai ter essa mudança concretizada, porque por mais boa vontade - e eu não estou querendo ficar brigando de feminista e machista -, é muito difícil para um homem, para uma pessoa que não vive a realidade da mulher entender o que são as nossas demandas. É muito difícil você querer que um homem que não tem por exemplo que cuidar dos filhos, amamentar o filho a madrugada inteira e estar bem no outro dia e acordada e produtiva e bonita e tudo que a sociedade exige da gente: boa filha, boa esposa, boa mãe, etc, entenda estas demandas. É difícil você querer que uma pessoa que não ocupa o seu lugar na sociedade saiba das suas demandas, então a gente percebe muito isso, que falta a mulher ocupar esses espaços, mas para a gente ocupar eles têm que existir. Eu estava conversando com pessoal em Porto Alegre, durante uma palestra em um evento, onde fizemos uma roda de conversa sobre mulheres na ciência num jantar. Estava com o pessoal da Universidade Federal de Santa Catarina  e justamente as meninas disseram, quando perguntei para elas: ‘Quantas mulheres ocuparam cargos de tomada de decisão do alto escalão que vocês enxergam ali no núcleo de vocês, Ciências da Saúde?’ Elas pensaram e me responderam: nenhuma. Elas disseram que, até onde elas sabem, elas não têm um histórico de ter representatividade em mulheres reitoras ou pró-reitoras, por exemplo. Então veja, se esses espaços não forem ocupados por mulheres, eles não vão ser pensados para mulheres. Os editais de fomento de projetos de pesquisa, por exemplo, quase nenhum leva em consideração a pontuação quando uma mulher é mãe e tem uma pausa na carreira. E quanto tempo leva para recuperar essa pausa? No meu exemplo, eu tive um filho gravemente doente, com câncer. Quanto tempo eu levei para recuperar essa pausa na minha carreira? Foi um ano que eu fiquei hospitalizada junto com ele. As pessoas, lógico, não conseguem medir isso, mas sequer pensam em criar uma forma de dar um bônus para essa mulher. ‘Ah! Se nos últimos cinco anos essa cientista foi mãe, a gente vai estender a avaliação dela em dois anos, três anos, considerar um pouquinho mais de tempo, pontuar melhor esse currículo lá para trás.’ Hoje ainda não tem isso. Existe um movimento que é o Parent in Science, do qual eu participo, discutindo como fazer isso. Um outro exemplo meu, eu fui mãe enquanto estava no mestrado. Nunca foi oferecido pela universidade para mim – e eu não tinha bolsa – uma creche para o meu filho ou um espaço que eu pudesse deixa-lo. Ele mamava no peito até eu terminar esse mestrado, e eles nunca me apoiaram ou ofereceram algum suporte como uma forma para eu não desistir da pós-graduação. Eu estou falando da minha experiência, mas não tem para graduação, não tem para o doutorado, não tem em momento nenhum. Por que que não tem? Porque quem planeja esses espaços são majoritariamente homens.

 

Quais os outros empecilhos e dificuldades? Há a questão cultural também?

Sim, eu acho que a questão cultural é bem interessante. Esse período que eu fiquei nos Estados Unidos, por exemplo, vi que a sociedade americana é culturalmente muito parecida com a brasileira n questão da mulher cientista. Mas, ainda assim, existe uma garantia de que vão dar acesso à mulher na universidade, principalmente, de que a gente vai ter uma equidade nos editais, de que a questão da maternidade é considerada. Eu acredito sim que tem uma questão cultural aqui no Brasil, e que tem que trabalhar muito para mudar isso, mas não é impossível. E quem faz essas regras dentro da universidade, por exemplo, somos nós, o corpo docente, então por que que essa regra não muda nunca? A gente tem muito que trabalhar, é cultural, mas eu vejo uma luz no fim do túnel, não acho que vai ser fácil, mas chegar até aqui não foi fácil. Minha geração está preparada para enfrentar isso com argumentos e ações.

 

Você precisou abrir mão de muita coisa nesse período?

Sim, é inevitável. Eu tenho histórias de amigas que deixaram para ter filhos depois que terminassem todos os estudos e passassem num concurso; eu tenho uma meia dúzia de exemplos que não conseguiram ter filhos. E isso é imputado na mulher, ou você vai ter filho ou você vai estudar. Eu ia tomar essa decisão de ter filhos mais tarde, até descobrir que eu tinha um problema de saúde e que se eu não tomasse uma decisão em um ano talvez eu nunca mais tivesse filhos. E eu queria ser mãe. Aí eu decidi tentar engravidar e engravidei no primeiro mês da minha tentativa - e está aí o meu filho bonitão com 17 anos. Por ter optado por ser mãe, eu recebi dedos apontados para mim de todas as formas, da minha seleção para entrar no mestrado, até hoje. Na minha entrevista de mestrado, a primeira coisa que perguntaram para mim não foi o meu nome, não foi o meu projeto, não foi porque eu queria fazer mestrado; ‘foi você é mãe, né? Como é que você vai fazer com seu filho?’ Isso marca a gente, porque para mim, na minha leitura da maternidade, isso não era problema ou empecilho. A minha escolha pessoal não diz respeito a ninguém. Mas em outros momentos também, durante o pós-doutorado, por exemplo, também pesava muito a questão de ser mãe, porque eu tinha colegas que não eram mães e a gente era cobrada a produzir muito tanto quanto elas. Se não produzisse perdia bolsa, perdia oportunidades, não ia ter financiamento para ir num congresso ou não ia ter dinheiro para executar os projetos. Eu enxergo que a gente que tem esse contexto de ser mulher, e principalmente ser mulher cientista mãe, tem que dar 200%, porque sempre vai ter um dedo apontado para você. Independentemente de ser mãe, eu vi os meus colegas homens com todos privilégios possíveis, desde a seleção, em que o orientador dizia: ‘Vamos selecionar esse menino jovem, solteiro e sem filhos’. Já ouvi muita conversa de corredor: ‘Vamos selecionar menino, porque menino não engravida’. De pessoas que tomam a decisão com base em: ‘Ai, menina é muito emotiva, para esse projeto não dá, eu preciso de uma pessoa mais agressiva’. Esse papo da testosterona vem, e vem da boca de mulheres, inclusive. Por ter passado essa história de dificuldade para chegar até aqui, eu me considero uma pessoa que deu certo nesta trajetória. Tive muito apoio familiar para isso, inclusive dos homens da minha rede familiar (pai, esposo, filho). Apesar de ter sido difícil, eu procuro sempre ajudar as meninas que têm a mesma história que eu. Elas estão aí, e são muitas, porque ninguém quer assumir estas meninas. Então, na pós-graduação, sempre aparece uma menina que tem filho, que está recém-parida eu já puxo para o meu time. Eu tenho uma aluna que tem três filhos e fez um doutorado brilhante, hoje é minha pós-doutoranda. Os filhos dela nunca foram impedimento para nada; nunca nas nossas conversas ela usou o filho como motivo para justificar o atraso num prazo. Aliás, ela nunca atrasou. A leitura que a sociedade tem é de que com a mulher vem embutidas todas as “fragilidades” do sexo feminino. Hoje eu tenho no meu time duas mães, mães de três filhos cada uma, que são minhas pós-doutorandas. Tenho uma doutoranda recém-parida, tenho uma outra doutoranda com dois filhos. Todas brilhantes. E as meninas que estão vindo e querem ter filhos são muito bem-vindas no nosso time que, além de ser um time que vê bem essa questão tanto dos meninos quanto das meninas, tem um espaço separado para essas meninas mães.

 

E como que está a pesquisa sobre mulheres, câncer e agrotóxico?

Essa pesquisa começou quando eu cheguei aqui [Francisco Beltrão-PR] em 2014, eu já trabalhava com câncer de mama, tanto na UEL quanto no Instituto Nacional de Câncer. Quando eu cheguei aqui, eu tinha que montar um laboratório e ter uma linha de pesquisa minha, então comecei a conhecer a população do Ceonc [Hospital do Câncer] e o contexto epidemiológico aqui da região [Sudoeste do Paraná]. Acabei caindo de para-quedas nesta área de agrotóxicos, que é a área que eu estou até hoje. De lá para cá, a gente vem investigando a relação entre as mulheres que são agricultoras e são expostas a agrotóxicos e os elevados índices de câncer de mama na região. Aqui temos não só muitos casos de câncer, mas também muito câncer agressivo. E é aí que mora o problema, porque se a tivesse uma alta incidência de cânceres curáveis, estaríamos resolvendo bem essa situação, mas não é o caso. A nossa incidência chega a ser 40% maior do que o resto do Brasil, com uma taxa de mortalidade perto de 20% maior também. Viemos caracterizando esta situação ao longo desses anos em parceria com outras instituições, como a Fiocruz, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a UEL, em trabalhos em conjunto caracterizando porque o agrotóxico faz isso. Temos vários estudos na parte molecular, que avançaram muito nesse campo. Não tinha nada quando eu comecei aqui em Francisco Beltrão, e hoje o nosso laboratório se tornou uma referência. Onde a gente pisa para falar desse assunto as pessoas respeitam e concordam que a gente está adicionando pecinhas importantes neste quebra-cabeça, tanto é que é por isso que eu fui parar no exterior. Quando apresentei esse projeto lá fora, o pessoal ficou muito interessado em colaborar para avançar nesse conhecimento em relação a essa temática, que é um problema no mundo inteiro.

 

Como é desenvolvida essa pesquisa?

Basicamente, tem uma parte desse estudo que é epidemiológica, que consiste em levantamento de dados de prontuários médicos, como a idade da paciente, que tipo de tumor a paciente tem, tamanho, se esse tumor se espalhou pelo corpo (oque chamamos de metástase), qual é o perfil de resposta ao tratamento que essa mulher recebe, se ela fez quimioterapia, se já fez menopausa, se é obesa ... então a gente junta todos esses dados para fazer o perfil epidemiológico. Num segundo momento, essas mulheres são entrevistadas para entender se elas são trabalhadoras expostas aos agrotóxicos. Existe um conjunto de 68 perguntas que caracterizam esta exposição e, no final, permitem saber se essa mulher é realmente exposta, se ela é uma trabalhadora exposta ao agrotóxico ou se é uma exposição ao acaso, como nós, que não somos agricultoras, mas expostas pela água, ou comida. Só aquela mulher que põe a mão no agrotóxico é que é considerada exposta. Sabendo o perfil da doença, o perfil da paciente e se ela é exposta ou não, a gente coleta sangue, saliva e tecido mamário não canceroso e canceroso. No laboratório, fazemos um estudo bem detalhado, analisando o material genético e perfil sanguíneo para tentar entender se elas têm alguma coisa diferente das mulheres que não são expostas aos agrotóxicos. Oque a gente vem achando até agora é que sim, que essas mulheres têm alterações no material genético e no perfil sanguíneo que conferem maior agressividade dos tumores de mama.

 

Quem participa? São os alunos de Medicina?

Sim, temos os alunos da graduação da Medicina e uma Liga Acadêmica, a Liga Acadêmica de Oncologia Clínica e Cirúrgica e Hematologia da universidade, que envolve os alunos que querem ser oncologistas. Também participam do projeto alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado, além de docentes da Unioeste e do corpo clínico do Ceonc. Sem o apoio fundamental do Ceonc a gente não sairia do lugar nesta pesquisa. O Daniel Rech, oncologista do Ceonc que foi meu aluno de mestrado e é coordenador do laboratório junto comigo, a Cynthia Rech, que nos apoia bastante em todas a etapas, e o corpo clínico e pessoal do centro cirúrgico, toda a frente de Enfermagem, técnicos e pessoal de administrativo, todos excepcionais e fundamentais para que essa pesquisa aconteça. Se a gente fosse colocar no papel, a quantidade de pessoas que precisa para executar um trabalho é enorme, porque é uma escala que começa na hora que a paciente pega o carro lá no município para chegar aqui, até ela voltar para casa dela com seu problema de saúde resolvido. É um ciclo gigantesco.

 

E quais os próximos encaminhamentos da pesquisa?

Agora que a gente já sabe que tem mais casos de câncer e que o perfil é mais agressivo, iniciamos um projeto voltado para numa etapa anterior. Começamos um trabalho com as mulheres agricultoras ainda jovens e que não têm câncer, porque eu acho que essa é a grande sacada: a prevenção. Para não ter esses números de incidência de câncer de mama crescendo, e quem sabe daqui 10 anos eu voltar a conversar com você e falar: ‘Olha, a gente conseguiu diminuir, não é mais 40% o número de casos acima da média nacional’. Esse trabalho é difícil, ele leva décadas, mas ele tem um impacto e todas as pessoas que apostaram nessas campanhas de prevenção - com ações, não só com falação -, colheram resultados muito bons. A gente começou um projeto chamado Toxicovigilância de Populações Expostas aos Agrotóxicos, que tem o apoio do Governo do Paraná, com o objetivo de conscientizar estas mulheres agricultoras sobre os riscos dos agrotóxicos para o câncer de mama. Sem o apoio do Governo do Paraná, que é o nosso grande financiador, a gente não consegue fazer esses projetos – que custam muito investimento. Precisamos de bolsas para pagar os acadêmicos, dinheiro para fazer essas coletas de material, para analisar esse material, fora equipamentos e infraestrutura. Aí vem a parceria da Unioeste, que fornece a infraestrutura de laboratório, por isso essa cadeia é complexa. Nesse projeto, em particular, focamos nas agricultoras jovens, que são expostas a agrotóxicos, mas que ainda não têm câncer. Nosso objetivo é mostrar para elas através de ações educativas que elas têm que se proteger. A gente conta essa história do projeto, numa linguagem muito acessível, para que elas entendam que as mães e as avós delas estão ficando doentes e que, se elas não fizerem alguma coisa, elas também vão ficar. Mostramos esses dados e, num segundo momento, educamos essas pessoas. Começamos a contatar os coletivos de mulheres, para fazer essa parte da educação, como manejar o agrotóxico sem se contaminar, como se proteger para não contaminar a família. Porque é a mulher quem lava a roupa e faz muitas vezes a contaminação cruzada do agrotóxico através da manipulação de itens e roupas contaminadas. Ela leva sem querer esta contaminação para dentro de casa, então a gente tem todo um plano de educação nesse sentindo. Por último, o projeto tem como objetivo fazer um teste científico, onde vamos convidar essas mulheres que manipulam agrotóxico a cederem uma mostra de urina após a manipulação do veneno em algum momento da sua rotina de trabalho. Depois vamos orientar, entregar o EPI, ensinar como é que manipula o veneno. E após manipularem novamente o agrotóxico sob as condições que ensinamos, vamos coletar outra amostra de urina. Vamos dosar agrotóxicos nas duas amostras com o objetivo de demonstrar para estas mulheres o impacto da proteção e manipulação correta do veneno. Nosso objetivo é demonstrar o poder da educação, e que tem como minimizar os danos da contaminação através do uso de equipamentos de proteção adequados.

 

Esse projeto já rendeu muitos prêmios?

Sim, depois que começamos esse trabalho e os dados começaram ser divulgados, foram mais de 50 prêmios. Ganhamos um prêmio bem importante aqui no estado do Paraná, que foi o 34º Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia. Embora seja um prêmio que foi dado a mim, como pesquisadora, ele se estende para minha equipe toda, sem eles não tem nada disso. Também ganhamos no mesmo ano o Prêmio Sesi ODS, que é um prêmio do SESI dados às iniciativas alinhadas com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Isso dá um selo para universidade, de instituição alinhada com esses objetivos. De lá para cá, dentro da esfera científica e do CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia, todo ano recebemos algum um tipo de premiação. O nosso trabalho esse ano foi citado numa das maiores revistas de ciência do mundo, que é a Science, como referência para tomada de decisão das políticas que o Brasil precisa priorizar nesta nova fase política, focando na proteção de populações que são expostas aos agrotóxicos. Eles podiam citar qualquer trabalho do mundo, mas eles citaram o nosso, então a gente se sente muito privilegiado por isso.

 

E é uma briga com peixe grande, não é mesmo?

Eu sempre falo que a gente que faz pesquisa na área dos agrotóxicos tem que cuidar para fazer ciência e não militância. A gente percebe que essa briga ganha uma outra força - e eu experimentei um pouquinho desse veneno recentemente - quando sai da esfera científica e ela ganha a grande mídia. Desenvolvi um trabalho em Harvard, nos Estados Unidos, sobre a contaminação da água do Paraná por agrotóxicos e sua relação com os índices de câncer no Estado. Na ocasião eu analisei o relatório do Siságua, do governo federal com dados de 2014-207, sobre a contaminação da água de torneira por 27 agrotóxicos. Observamos que 11 deles eram possivelmente, potencialmente ou comprovadamente cancerígenos e associamos seus níveis com o número de casos que cada município paranaense notificou para cinco tipos de cânceres no mesmo período. E a gente achou o que era óbvio: uma associação entre a contaminação da água da torneira por agrotóxicos com o número elevado de casos de câncer documentados no Paraná. Falo que eu experimentei desse veneno, porque a mídia veio para cima deste trabalho. Por intermédio do Greenpeace, dei uma entrevista para o Estadão que estourou no país e internacionalmente em 24h. Neste episódio experimentei o lado bom e o ruim da “fama científica”. Muitas pessoas muito relevantes nessa área se manifestaram e vieram apoiar o nosso trabalho, e disso surgiram colaborações muito grandes. Mas ao mesmo tempo muita gente veio para cima. A gente falou de fake news agora há pouco - existe inclusive cientista que sustenta essas fake news. Isso é horrível, né? Eu tive contato com vários deles, que me mandaram e-mails e mensagens, questionando a nossa pesquisa. Eu me lembro de conversar com o professor de Harvard sobre isso e disse para ele que para essas pessoas eu não ia dar uma resposta, porque eles não merecem. Quem merece uma resposta é a população, que está preocupada com o que está acontecendo, são os gestores, que estão preocupados com a saúde da população, quem merece uma resposta da nossa parte é a sociedade – que paga essa conta. Pessoas que lutam contra a ciência ou que tentam criar maneira de desmoralizar resultado científico sem ser cientista ou sem ter um argumento que rebata o meu estudo, só veio com opinião e opinião errada, e eu não vou gastar tempo em responder. Então a gente decidiu aproveitar esse momento para se fortalecer. Vieram muitas colaborações, a gente passou a ser conhecido no Brasil inteiro. Onde fala nas nossas pesquisas as pessoas sabem que ela existe. Isso me fez perder algumas horas de sono pensando e refletindo sobre esse vespeiro que é o agro. Mas eu estou muito tranquila, porque o nosso trabalho, de forma alguma, vem atacar o agro ou alguma empresa ou alguma situação específica. A gente vem defender a população, que é uma coisa bem diferente. Essas pessoas não têm voz, a maioria delas não tem estudo, elas não têm como se manifestar enquanto cidadãos. A gente vem com essa voz e com mais força ainda, são mulheres falando para mulheres, porque a gente estuda cânceres que são da população feminina. O Ministério da Saúde veio conversar conosco para entender um pouco dos resultados, para formular a cartilha de vigilância às populações expostas a agrotóxico. Por mais de formiguinha que seja trabalho, tenho certeza de que estamos no caminho certo e o resultado final vai valer muito a pena. Só pelo que conseguimos até aqui, já valeu.

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