May-Britt Moser, Nobel de Fisiologia ou Medicina, 2014

 May-Britt Moser e o “GPS” do cérebro

Olá, pessoal, como vocês estão? Nós estamos bem e muito felizes em contar mais uma história maravilhosa por aqui! Hoje vamos conhecer uma cientista muito persistente, que nunca desistiu de correr atrás do seu sonho de infância e entender uma das coisas mais enigmáticas da natureza. Vem com a gente nessa viagem no tempo?

May-Britt Moser nasceu em 4 de janeiro de 1963, em Fosnavåg, localizada em uma ilha da Noruega. Ela cresceu em uma pequena fazenda com seus pais e quatro irmãs(os) mais velhas(os). Enquanto o pai trabalhava como carpinteiro, sua mãe cuidava das crianças, da fazenda e ainda arrumava alguns trabalhos esporadicamente. Ambos trabalhavam muito sempre e, por isso, desde cedo May-Britt aprendeu a importância do trabalho e que ele pode trazer felicidade.

Ela descreve sua infância como feliz! Foi uma criança muito curiosa, cheia de sonhos e que gostava de brincar. Nas férias de verão, como sua família era humilde e não tinha carro, May-Britt passava bastante tempo em casa. Sua diferença de idade com as irmãs e os irmãos era de 10 anos, então costumava passar o tempo livre sozinha, estudando sobre os animais e brincando. Ela amava observar os animais e ficava se perguntando sobre os motivos dos comportamentos que tinham. May-Britt conta que sua mãe contava histórias de contos de fadas, sempre falando sobre sonhos e incentivando-a a ser uma pessoa boa e trabalhar duro.

A mãe de May-Britt Moser sonhava em ser médica na juventude e seu pai a ensinou a sempre cuidar dos animais. Além disso, por causa do contato que tinha com pessoas missionárias que visitavam vários países, May-Britt passou a desejar viajar mundo afora, visando estudar para se tornar médica ou veterinária e salvar o mundo! Na época da escola, não tinha as melhores notas, mas as professoras e professores a incentivavam sempre. May-Britt lembra de um professor de Física que encorajava, em especial, as alunas: “Eu tive um professor de Física que realmente encorajou suas alunas ao nos dizer que queria que voltássemos e mostrássemos a ele que tínhamos nos tornado engenheiras.”[1]

Apesar dos incentivos em casa e na escola, May-Britt não se sentia tão motivada durante o Ensino Médio e não tinha notas altas o suficiente para ingressar no curso de Medicina. Mas suas notas ainda assim eram boas, então sua mãe a avisou que ela precisaria se dedicar mais aos estudos.


May-Britt Moser - Fonte: Vogler; Licença: CC BY-SA 4.0.

Nos anos 1980, May-Britt Moser decidiu ingressar na Universidade de Oslo, em partes, porque tinha duas irmãs que moravam nos arredores da cidade. Ela amava a Universidade por causa da liberdade que tinha, além de ter uma vida social muito ativa. Mas May-Britt teve várias dúvidas sobre o que cursar, pois adorava Matemática e Física na época do Ensino Médio, também considerou estudar Biologia ou Geologia e se tornar professora, acabou se inscrevendo para o curso Odontologia, incentivada por um namorado que tinha na época e que fazia esse curso, mas apesar de ser aceita, optou por não seguir.

Foi nesse período que ela conheceu Edvard I. Moser em Oslo, e lembrou dele da época da escola. Ele estava visitando a cidade antes de começar a Universidade e, assim que May-Britt soube que Edvard retornaria em breve para o início das aulas, convidou-o para conhecer a cidade com ela quando voltasse. Assim, logo se tornaram amigos e decidiram estudar Psicologia juntos, pois queriam aprender sobre o cérebro. Isso fez com que May-Britt se sentisse muito realizada, lembrando-se de quando era criança e desejava compreender porque fazemos as coisas que fazemos.

No primeiro ano do curso, May-Britt e Edvard estavam na mesma turma da disciplina de Psicologia de Pequenos Grupos, e lá publicaram um artigo em parceria com as e os demais estudantes e o professor, como resultado de uma pesquisa. O artigo, intitulado “The interactional effects of personality and gender in small groups: A missing perspective in research” (“Os efeitos interacionais da personalidade e do gênero em pequenos grupos: uma perspectiva ausente na pesquisa”, em tradução livre), foi publicado no International Journal of Small Group Research e o professor passou a encorajar May-Britt e Edvard a seguir na área da Psicologia Social, mas eles não quiseram, pois o desejo maior ainda era estudar o cérebro.

Após isso, May-Britt e Edvard começaram a estudar no laboratório de Terje Sagvolden, que estava pesquisando sobre hiperatividade em ratos. Ainda nessa época, May-Britt e Edvard começaram um relacionamento amoroso e se tornaram noivos no topo do Monte Kilimanjaro, na Tanzânia. Casaram-se, então, em 1985.

Trabalhando no laboratório de Terje Sagvolden, May-Britt estudou sobre o comportamento por dois anos e achou muito interessante lidar com os ratos. Lá, ela e Edvard aprenderam sobre teoria comportamental e planejamento experimental, especialmente a necessidade de ter controle de um experimento. Mas continuavam questionando Sagvolden se não poderiam estudar o cérebro em si, pois, de acordo com May-Britt, os dois juntos tinham uma grande ânsia em compreender esse órgão. Com isso, já nos anos 1990, May-Britt e seu marido decidiram iniciar o mestrado e, para seguirem com o objetivo de estudar o cérebro diretamente, optaram por tentar ingressar no grupo de Neurociências do pesquisador Per Oskar Andersen. No entanto, ela conta que foi um grande desafio, pois o pesquisador não costumava aceitar pessoas da área da Psicologia e o grupo já estava cheio.

May-Britt Moser e Edvard Moser no laboratório - Fonte: Geir Mogen/ NTNU; Licença: CC BY-NC 2.0.

Mas, apesar disso, May-Britt não desistiu! Ela afirma que não saiu do escritório de Per Oskar Andersen enquanto ele não aceitou ela e o marido como estudantes de mestrado. Então, o professor afirmou que somente poderiam ingressar em seu laboratório caso lessem o artigo de Richard Morris sobre o labirinto aquático (MWM, sigla em inglês para “Morris Water Maze”), compreendessem e construíssem o experimento do labirinto. Caso tivessem sucesso, então seriam aceitos como mestranda e mestrando. May-Britt conta que ela respondeu: “Que maravilha, porque nós também queremos fazer o doutorado com você!”[2]

Dessa forma, May-Britt, ao lado do marido, precisou construir o experimento do zero, o que foi muito desafiador, dado que eles eram estudantes de Psicologia durante o dia e trabalhavam no laboratório durante a noite. O experimento do labirinto levou dias de incansável dedicação, mas tiveram sucesso e, portanto, começaram a pesquisar no laboratório de Per Oskar Andersen.

Per mostrou a May-Britt e seu marido como fazer pequenas lesões no hipocampo, porque ele tinha o desejo de estudar a Potenciação de Longa Duração (PLD) no cérebro vivo. A PLD é uma melhoria duradoura na transmissão do sinal entre dois neurônios, que resulta da estimulação de forma síncrona e que havia sido descoberta em 1966 por Terje Lømo, supervisionado pelo próprio Per Oskar Andersen. Eles tinham que fazer lesões nas partes dorsal e ventral do hipocampo para que uma fatia hipocampal ficasse em ambos os lados do cérebro. A ideia de Per é que seria mais fácil detectar a PLD no cérebro vivo se a área em que ocorresse essas mudanças fosse restrita. May-Britt descreve esta pesquisa como um desafio para ela e Edvard, afinal, os dois eram psicólogos e ainda não entendiam muito da anatomia do cérebro, porém eles aprendiam rápido.

A ideia de Per era dar treinamento extensivo para os animais no labirinto aquático para que depois que os ratos aprendessem muito, então pudessem medir as mudanças na pequena fatia hipocampal que havia sobrado no cérebro. A predição era que essa fatia aumentaria a eficiência das sinapses comparado aos animais que não aprendiam. May-Britt e o marido pensaram que, primeiramente, eles precisavam descobrir se os animais conseguiriam aprender algo tendo esse tipo de lesão e que era necessário terem controle dos parâmetros do experimento. Eles precisavam saber se deixavam a parte central do hipocampo sem modificar, se os ratos aprenderiam caso a parte dorsal fosse removida e o que aconteceria se a parte ventral fosse removida. Eram muitas dúvidas, mas May-Britt Moser e seu imenso desejo de compreender melhor o cérebro não se abalaram!

Depois de muitos experimentos, descobriram que quando os ratos possuíam uma lesão na parte dorsal do hipocampo, eles não aprendiam, mas se eles tivessem uma lesão na parte ventral, eles aprendiam normalmente. O hipocampo era conhecido por estar envolvido nesse comportamento, mas May-Britt e as(os) colegas descobriram que apenas a parte dorsal do hipocampo realmente estava envolvida na aprendizagem espacial e na memória, além de que o hipocampo era heterogêneo funcionalmente, mesmo com seu exterior parecendo homogêneo.

Os resultados da pesquisa com o MWM foram levados por May-Britt e Edvard em um encontro da Associação Europeia de Neurociência (ENA, sigla em inglês para “European Neuroscience Association”), no qual o pôster cor de rosa que ela havia feito chamou a atenção do próprio Richard Morris, criador do experimento. Sobre esse momento, ela conta: “Richard deu uma palestra no encontro e mencionou nosso pôster, e eu achei isso incrível. Edvard e eu estávamos muito orgulhosos!”[3]

O estudo também foi publicado no The Journal of Neuroscience e se tornou a tese de mestrado de May-Britt Moser e Edvard Moser. Na ocasião, o casal estudou o hipocampo, que é a região do cérebro responsável por várias funções, incluindo, em especial, seu papel na aprendizagem e na formação da memória. Durante o trabalho, investigaram as partes dorsal e ventral do hipocampo e demonstraram que elas eram diferentes. Dessa maneira, uma das questões decorrentes, considerando que já sabiam que a parte dorsal era envolvida na memória, era sobre qual seria a função da parte ventral. Assim, May-Britt e seu marido começaram a ler muito sobre anatomia e a pensar sobre a natureza das conexões entre o córtex entorrinal e as partes dorsal e ventral do hipocampo.


May-Britt Moser - Fonte: Geir Mogen/ Instituto Kavli; Licença: CC BY-NC 2.0.

Ao final da dissertação de mestrado, ambos queriam fazer doutorado com Per Oskar Andersen, mas o desafio dessa vez era conseguir duas bolsas, pois era difícil obter financiamento naquela época. Infelizmente, no nosso contexto brasileiro atual, a situação não é muito diferente. As chamadas “bolsas” que estudantes de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado recebem não são meros auxílios ou regalias, ao contrário, são o salário que recebem para pesquisar e trazer grandes mudanças para a sociedade! Sem as bolsas, pesquisadoras e pesquisadores ficam sem ter como viver e são obrigadas(os) a desistir de seus sonhos. O que temos a ver com isso? Tudo! Quando perdemos pessoas dedicadas à pesquisa por falta de dinheiro, todas as pessoas saem perdendo, pois a Ciência passa a caminhar mais lentamente. Lembra como foi rápido o sequenciamento do genoma do novo coronavírus feito pela Doutora Jaqueline Goes de Jesus e sua equipe? Por isso precisamos valorizar a Ciência e quem se dedica a ela!

Continuando...Per afirmou que conseguiria uma bolsa para um projeto específico, que Edvard se interessou mais do que May-Britt, mas Per também incentivou que ela não desistisse de seguir para o doutorado e afirmou que conseguiria financiamento para desenvolver sua tese. Depois de recusar a ideia inicial dele, para estudar os efeitos do álcool nas sinapses no cérebro de ratos, May-Britt insistiu que queria estudar sobre o aumento das sinapses conforme os ratos aprendiam coisas novas. Ela acreditava muito em sua ideia!

Mesmo com Per Oskar Andersen desacreditando de May-Britt Moser, a princípio, e tentando impedi-la de enviar uma proposta de financiamento para o Conselho de Pesquisa, ela insistiu muito até que ele foi convencido. E assim, tanto ela quanto Edvard conseguiram as bolsas e iniciaram o doutorado. May-Britt conta que desde sempre foi uma pessoa muito determinada, que lutava bravamente por seus objetivos. Muitas vezes, mulheres pesquisadoras necessitam lutar para que sejam ouvidas e consigam levar suas ideias adiante. Por isso, relembramos que é necessário sempre buscarmos a equidade de gênero, para que as mulheres e suas ideias sejam respeitadas e para que as Ciências não sejam mais estereotipadas como “algo masculino”.

No projeto de doutorado, May-Britt Moser ofereceu aos ratos um ambiente amplo enriquecido com brinquedos e com diferentes andares, que os ratos podiam explorar diariamente por quatro horas, durante 14 dias. Nessa época, no ano de 1991, ela teve sua primeira filha com Edvard, Isabel, que esteve em seu colo durante diversos experimentos. A partir de então, a pesquisadora comparou o hipocampo de ratos que tinham e que não tinham sido expostos ao ambiente cheio de estímulos, percebendo uma grande diferença. Também treinou os animais e percebeu que os ratos que tinham vivenciado o ambiente enriquecido eram mais rápidos e melhores que os que não tinham. Os resultados desse momento da pesquisa foram publicados por ela em várias revistas da área.

Ainda no período do doutorado, May-Britt e Edvard foram convidados por Richard Morris para irem até a Universidade de Edimburgo testarem os resultados obtidos durante o mestrado, mas por meio de uma técnica diferente. Depois desses novos experimentos, o casal novamente chegou à conclusão que as partes dorsal e ventral do hipocampo são diferentes.

Em 1995, nasceu a segunda filha do casal, Ailin, e ambos defenderam suas teses de doutorado. Após a defesa, o casal deu uma grande festa, com a presença de várias e vários cientistas reconhecidas(os) internacionalmente, onde aconteceram seminários e também passeios de trenó. May-Britt conta que algumas dessas pessoas, um dia, foram consideradas por ela como adversárias na academia, mas que depois passaram a ser membras importantes de sua rede científica. Além disso, o nascimento das duas filhas durante a época do doutorado também foi algo marcante na vida de May-Britt Moser, sobre isso, ela relembra:

“Muitas pessoas me perguntam como consegui fazer todo esse trabalho com duas crianças pequenas - Isabel nasceu em junho de 1991, logo após o início do doutorado, e Ailin nasceu em 1995, pouco antes de concluirmos nosso doutorado. A resposta é que estávamos tão motivados a entender o cérebro que simplesmente fazíamos as coisas funcionarem, não víamos nenhum problema - nada poderia nos parar. Desde os primeiros dias, levamos as meninas ao laboratório - ambas eram crianças muito boas, muito comportadas. [...] É claro que tínhamos babás e vagas de pré-escola para as crianças [...], mas à tarde e nos fins de semana elas costumavam brincar no escritório. Se as pessoas se opusessem, eu perguntaria qual era o problema no que eu estava fazendo. Não que eu tivesse liberdade - apenas presumi que poderia fazer coisas, como levar minhas filhas para reuniões científicas e amamentá-las em público, ou levá-las ao laboratório.”[4]

Maternidade e Ciência, geralmente, são colocadas como mundos opostos, impossíveis de se combinarem. No entanto, May-Britt Moser nos mostra que é sim possível ser mãe e cientista. Mas é importante não esquecermos que nem todas as pesquisadoras que se tornam mães têm essa experiência e que May-Britt também precisou vencer dificuldades. Dessa forma, defendemos que Maternidade e Ciência podem coexistir, porém, para isso, é importante que as mães sejam respeitadas e apoiadas, dentro e fora da comunidade científica.

May-Britt Moser e Edvard Moser - Fonte: NTNU; Licença: CC BY-NC 2.0.

Em 1996, May-Britt e Edvard foram para Londres, para trabalhar com o pesquisador John O’Keefe, no entanto, enquanto Edvard ficou três meses lá, May-Britt só pode ficar um mês, por causa da dificuldade em cuidar das crianças.

Antes de defenderem suas teses, May-Britt Moser e Edvard Moser se candidataram a uma vaga na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia (NTNU, sigla em inglês para “Norwegian University of Science and Technology”), na cidade de Trondheim. Apesar de recusarem a oferta inicial da instituição, a Universidade ofereceu ao casal duas vagas e aceitou as exigências deles para o estabelecimento de um laboratório de pesquisa. Assim, depois do tempo que passaram em Londres, May-Britt e Edvard mudaram os planos de continuar viajando o mundo, voltaram para a Noruega e assumiram os cargos na Universidade ainda em 1996.

Então, May-Britt e seu marido começaram a dar aulas e a pesquisar. Demorou algum até conseguirem os primeiros resultados neste novo local de trabalho, pois apenas os dois trabalhavam no laboratório e, por isso, precisavam dar conta de todas as funções, que iam desde lidar com os dados obtidos até limpar as gaiolas dos animais. Algum tempo depois, o casal conseguiu financiamento para os estudos e, a partir de 2002, o laboratório passou a se chamar “Centre for the Biology of Memory” (“Centro da Biologia da Memória”, em tradução livre). Muitas e muitos cientistas, de vários lugares do mundo, foram visitar e trabalhar no Centro, especialistas em diversas áreas que estiveram lá para contribuir com um esforço conjunto em estudar sobre o hipocampo.

Em 2005, por meio dos experimentos com ratos, May-Britt e as demais pessoas do laboratório encontraram um novo tipo de célula, que chamaram de células de grade. Os resultados, então, foram publicados na Revista Nature. Estudar sobre essas células foi importante para ajudar May-Britt Moser e as(os) colegas a compreenderem como nos movimentamos pelo espaço. A partir disso, conseguiram entender como o cérebro utiliza informações complexas, por exemplo, onde estamos e como nos movemos, para gerar seu próprio código interno para fazer uso desses dados.

Utilizando também estudos anteriores do laboratório de John O’Keefe, a pesquisadora observou que determinada atividade neural, sendo ela o disparo da célula de localização no hipocampo, estava associada a uma propriedade do ambiente, a localização do animal. Ainda, a descoberta das células de grade contribuiu para o melhor entendimento disso. E assim, mais perguntas surgiram!


May-Britt Moser observando um rato - Fonte: Instituto Kavli/ NTNU; Licença: CC BY-NC 2.0.

May-Britt, juntamente com Edvard e estudantes de Pós-Graduação que pesquisavam em seu laboratório, continuaram investigando sobre como o cérebro interpreta as nossas movimentações pelo espaço, as direções que seguimos. Então, em 2007, o Centre for the Biology of Memory recebeu um Prêmio da Fundação Kavli e se tornou também o “Kavli Institute for Systems Neuroscience” (“Instituto Kavli de Neurociência de Sistemas”, em tradução livre), o que foi muito importante para o laboratório, em especial em termos de financiamento.

No ano seguinte, 2008, dentre outras pesquisas conduzidas lá, a equipe descobriu um novo tipo de célula entorrinal, que chamaram de células de fronteira, e também descreveu como o cérebro constrói mapas de diferentes resoluções, tanto no hipocampo quanto no córtex entorrinal, usando células de localização e células de grade para criar tudo, desde um mapa de visão geral maior até um mapa minuciosamente detalhado. Mais adiante, em 2012, May-Britt Moser e suas e seus colaboradoras(es) foram capazes de descrever como o cérebro muda a resolução desses mapas gradativamente e que o órgão tem pelo menos quatro mapas de localização diferentes, onde as células da grade são organizadas em módulos independentes em que a escala, a orientação e as relações de fase são preservadas.

Com a descoberta que as células de grade, as células de direção e as células de fronteira interagiam com as células de localização do hipocampo para determinar a orientação e a navegação dos ratos pelo espaço, May-Britt Moser e Edvard Moser descreveram um sistema conhecido como “GPS interno”.


Conferência do Nobel de Fisiologia ou Medicina 2014, no Karolinska Institutet; da esquerda para a direita está Edvard I. Moser, May-Britt Moser e John O'Keefe - Fonte: NTNU; Licença: CC BY-SA 2.0.

Ainda em 2012, May-Britt e Edvard fundaram o “Norwegian Brain Centre” (“Centro Norueguês do Cérebro”, em tradução livre), que consistia na colaboração entre seu laboratório e grupos de pesquisa do Hospital St Olavs, que investigavam exames de imagem, e que foi conduzida com o financiamento do governo norueguês. Durante esses anos, o grupo de pesquisa de May-Britt Moser cresceu, passou a ter diferentes sedes e continua se dedicando a compreender melhor sobre o cérebro. De acordo com a própria May-Britt, trabalhando muito e estando ao lado de pessoas fantásticas, ela está conseguindo seguir em direção ao seu sonho de infância: entender como a atividade neural no cérebro gera comportamento e cognição. Sobre os estudos realizados, ela comenta:

“Ao descobrir a rede de células de grade, de repente entendemos algo fundamental sobre o mistério do cérebro - como o cérebro gera um mapa universal do ambiente. As células de grade que fazem isso estão localizadas bem longe dos sentidos que dizem ao animal o que está lá fora. Nessa mesma estrutura, o córtex entorrinal, também descobrimos outros tipos de células funcionais que sinalizam os limites do ambiente, células que sinalizam a direção em que o animal está se movendo e células que combinam a direção da cabeça e os sinais da grade. Mostramos que, com mudanças de entrada sensorial, o mapa de grade universal é deslocado e ancorado de maneira diferente ao ambiente - provavelmente mudando os conjuntos ativos de células de localização do hipocampo. Sabendo que o hipocampo contém engramas envolvidos nas memórias episódicas, mostramos que esse círculo mágico de interações entre as células entorrinais e hipocampais é parte do mecanismo da memória. Estamos trabalhando com descobertas que são a própria essência do ser humano: nossas memórias conscientes são o que nos fazem quem somos, e essas memórias estão ancoradas no espaço, em saber onde estamos no ambiente.”[5]

Com isso, em 2014, May-Britt Moser recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina “por suas descobertas de células que constituem um sistema de posicionamento no cérebro”[6]. Ela dividiu o Prêmio com seu marido, Edvard I. Moser e seu colega John O'Keefe.


May-Britt Moser, laureada com o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina 2014

Fonte: NTNU; licença: CC BY 2.0.

Em 2015, a revista alemã Der Spiegel fez uma entrevista com Christiane Nüsslein-Volhard (laureada com o Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1995, a história dela pode ser acessada em: https://meninasemulheresnascienciasufpr.blogspot.com/2021/01/christiane-nusslein-volhard-nobel-de.html) e May-Britt Moser para discutirem sobre os desafios que uma mulher enfrenta em um mundo das Ciências “dominado por homens” e como elas venceram inúmeras barreiras. Em uma das perguntas, indagou-se se não havia brigas ou conflitos para a apresentação dos resultados em conferências e May-Britt recorda-se de uma situação com seu projeto de Doutorado:

“Eu tive que lutar para ser a autora principal do meu projeto. Eu lembro, nós deveríamos submeter nossos projetos na segunda-feira. Nossa filha mais nova estava para nascer, mas eu ainda estava trabalhando na sexta-feira. Então ela nasceu no sábado de manhã e três dias depois eu fui garantir que ainda era a primeira autora. Eu tive medo pelo meu outro bebê: meu projeto.”

Em 2016, o casal Moser anunciou a separação, mas continuam a trabalhar cientificamente juntos, tendo muita admiração e respeito um pelo outro. Em 2020, a Fundação Stiftelsen Kristian Gerhard Jebsen doou 22,5 milhões de coroas norueguesas (que é moeda oficial da Noruega) para um novo Centro Nacional Noruguês para o Combate à Doença do Alzheimer, que está sendo liderado pela May-Britt e pelo Edvard. Recentemente, em 29 de abril de 2021, May-Britt e muitas(os) laureadas(os) com o Prêmio Nobel emitiram um apelo urgente por ações sustentáveis em prol do planeta e mudanças de posicionamentos depois da Cúpula “Nosso Planeta, Nosso Futuro”.

May-Britt possui mais de 1000 publicações científicas e atualmente é professora de neurociência da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia e do Instituto Kavli de Neurociência de Sistemas, além de ser diretora do Centro de Computação Neural.

“...se você acredita em si próprio e em suas perguntas, então você pode construir algo único.”

E então? O que acharam? Nós adoramos conhecer a incrível trajetória da May-Britt Moser em busca de realizar o sonho de compreender o cérebro! Sua pesquisa foi e continua sendo de grande importância para as Ciências e ela nos inspira muito pela sua paixão por pesquisar!

Abraços apertados à distância, cuidem-se e até a próxima!

Por Gabriela Ferreira, Amanda Ribeiro da Rocha e Glaucia Pantano


Infográfico: Amanda Ribeiro da Rocha

Algumas curiosidades sobre May-Britt Moser

As duas filhas de May-Britt e Edvard costumavam brincar que o laboratório era o terceiro filho deles. De acordo com May-Britt, elas estavam certas, e que tanto as filhas biológicas quanto o “filho laboratório” trazem muito orgulho e muita felicidade para a sua vida.

Em 2014, May-Britt concedeu uma entrevista ao Correio Braziliense por telefone, enquanto se deslocava de táxi em Trondheim. Ela afirmou que ficou chocada e não conseguia acreditar que havia sido laureada com o Prêmio Nobel. A entrevista completa (e em português!) pode ser acessada em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2014/10/07/interna_ciencia_saude,451120/fiquei-chocada-diz-may-britt-moser-ao-saber-que-receberia-nobel.shtml. Acesso em: 21 mai. 21.

May-Britt Moser diz que não se sente sozinha atualmente, apesar de ter se separado de Edvard e suas duas filhas terem saído de casa, pois tem um cachorro. Ela disse ao El País: “Quando você tem um cachorro, não há espaço para hobbies. Saio com ele pelo menos duas vezes por dia, e lhe dedico muito tempo”. A matéria, em português, pode ser vista em:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/26/internacional/1537983930_127674.html. Acesso em: 21 mai. 21.

Um pouco mais sobre May-Britt Moser

Em 8 de abril de 2021, May-Britt Moser esteve no evento online “O Valor da Ciência - Diálogo Nobel Brasil”, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), pela Nobel Prize Outreach (braço de comunicação da Fundação Nobel) e em colaboração com o Instituto Serrapilheira. Também estiveram no encontro Serge Haroche, laureado com o Prêmio Nobel de Física em 2012, Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, e Helena Nader, copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências. Duas das autoras deste texto, Gabriela e Amanda, participaram do evento ao vivo e se apaixonaram ainda mais pela May-Britt! Mas se você perdeu, não se preocupe! A transmissão completa, em português ou em inglês, está no site da ABC, disponível em: http://www.abc.org.br/evento/nobel-brasil-2021/. Acesso em: 21 mai. 21.

THE NOBEL PRIZE. May-Britt Moser - Nobel Prize in Physiology or Medicine 2014. Women Who Changed Science, s. d. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/womenwhochangedscience/stories/may-britt-moser>. Acesso em: 21 mai. 21.

Referências

ELMKVIST-NILSEN, Rita. Norway's Nobel laureates take up the fight against Alzheimer's, Eurekalert, 2020. Disponível em: <https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-03/nuos-nnl030420.php>. Acesso em: 23 mai. 2021.

ROGERS, Kara. May-Britt Moser - Norwegian neuroscientist. Encyclopaedia Britannica, 2021. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/May-Britt-Moser>. Acesso em: 21 mai. 21.

THE NATIONAL ACADEMIES SCIENCES, ENGINEERING AND MEDICINE. Nobel Prize Laureates and Other Experts Issue Urgent Call for Action After ‘Our Planet, Our Future’ Summit, 2021. Disponível em: <https://www.nationalacademies.org/news/2021/04/nobel-prize-laureates-and-other-experts-issue-urgent-call-for-action-after-our-planet-our-future-summit>. Acesso: 22 mai. 21.

THE NOBEL PRIZE. May-Britt Moser Biographical, c2021. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2014/may-britt-moser/biographical/>. Acesso em: 21 mai. 21.

THE NOBEL PRIZE. May-Britt Moser Facts, c2021. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2014/may-britt-moser/facts/>. Acesso em: 21 mai. 21.

THE NOBEL PRIZE. The Nobel Prize in Physiology or Medicine 2014, c2021. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2014/summary/>. Acesso em: 21 mai. 21.

VON BREDOW, Rafaela; KULLMANN, Kerstin. 'Women Are Just As Gifted in Science as Men', Spiegel, 2015. Disponível em: <https://www.spiegel.de/international/germany/spiegel-interview-with-two-female-nobel-prize-recipients-a-1047838.html>. Acesso em: 22 mai. 21.



[1] Texto original: "I had a physics teacher who really encourajed his female students by telling us that he wanted us to come back and show him we had become engineers."


[2] ​Texto original: “Oh wonderful, because we want to do a PhD with you, too!

[3] Texto original: “Richard gave a plenary talk at the meeting and he mentioned our poster, and I thought that was pretty amazing. Edvard and I were so proud!”

[4] ​Texto original: “Many people ask me how I managed to do all this work with two small children – Isabel was born in June 1991, right after we started our PhDs, and Ailin was born in 1995, right before we completed our PhDs. The answer is that we were so driven to understand the brain that we simply made things work, we could not see any problems – nothing could stop us. From the earliest days, we took the girls to the laboratory – they were both very good children, very well behaved. [...] Of course we had nannies and preschool places for the children [...], but in the afternoon and in the weekends they often played in the office If people objected, I would ask them what was the harm in what I was doing? It wasn’t that I had the freedom – I just assumed I could do things, like take my children to scientific meetings and breast-feed them in public, or bring them to the lab.”
[5] ​Texto original: “By discovering the grid cell network, we suddenly understood something fundamental about the mystery of the brain – how the brain generates a universal map of the environment. The grid cells that do this are located far away from the senses that tell the animal what is out there. In the same deep structure, the entorhinal cortex, we have also discovered other functional cell types that signal the boundaries of the environment, cells that signal the direction the animal is moving in and cells that combine the head direction and grid signals. We have shown that with changes of sensory input the universal grid map is shifted and anchored differently to the environment – probably changing the active ensembles of hippocampal place cells. Knowing that the hippocampus contains engrams involved in episodic memories, we have shown that this magic circle of entorhinal and hippocampal cell interactions is part of the mechanism for memory. We are working with findings that are the very essence of being a human being: our conscious memories are what make us who we are, and these memories are anchored in space, in knowing where we are in the environment.”

[6] ​Texto original: "for their discoveries of cells that constitute a positioning system in the brain"

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